Decisões sobre questões como IA e automação têm de competir à sociedade

Publicado em 17/03/2021 22:02 em Destaques

As questões que decorrem de tecnologias, como é o caso a Inteligência Artificial (IA), a automação, condução autónoma, recolha massiva de dados pessoais e Internet das Coisas (IoT), têm de ser discutidas desde já e decididas pela sociedade para não ficarem reféns de decisões de grupos ou empresas tecnológicas.

A opinião é do professor universitário Luís Antunes, Data Protection Officer (DPO) na Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), no evento de apresentação do manifesto de «Compromisso Nacional para uma Transformação Digital centrada no Ser Humano», desenvolvida por um grupo de missão da APDSI – Associação Portuguesa para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, coordenado por Vergílio Rocha.

Luís Antunes destacou que a sociedade está a evoluir de uma rede Internet, de computadores interligados, para uma rede gigantesca que interliga objectos, virtuais e físicos, lugares, pessoas, equipamentos diversos, infra-estruturas - a IoT -, e, de alguma forma, estamos a criar um mundo computacional omnipresente.

Observou que a IoT é a extensão da Internet a um nível subsequente, que aproxima o mundo digital do mundo físico e os faz interagir.

Salientou questões preocupantes como a condução autónoma, que parte de programações que implicam aspectos de decisão muito complicados e controversos, incluindo ao nível de decisões de vida e morte, o reconhecimento facial, que utiliza algoritmos que induzem alguns enviezamentos e para os quais alguns Estados dos EUA estão a publicar regulamentação, ou a recolha massiva de dados pessoais por empresas.

Luís Antunes sublinhou que o uso de dados pessoais para a manipulação não se limita à publicidade, mas também visa manipular as pessoas, incluindo para fins eleitorais, como aconteceu nos Estados Unidos, observando que o escândalo da Cambridge Analytics não foi um problema ligado à tecnologia, foi quando pessoas ligadas à psicologia e à sociologia perceberam a manipulação que podiam fazer com os dados pessoais recolhidos.

Aquele elemento da CNPD perguntou se vamos deixar ao livre arbítrio de redes sociais a decisão de cancelar ou suspender contas ou se isso deveria ser uma prerrogativa da sociedade através do sistema de justiça, indicando se pareceu muito apelativo fazer isto com um presidente que todos conhecemos, amanhã pode ser feito contra qualquer um.

Luís Antunes sublinhou que os dois gigantes tecnológicos dos telemóveis impediram a França e a Inglaterra de construírem um modelo tecnológico centralizado que acreditavam ser mais eficaz do ponto de vista epidemiológico, porque exigiram um modelo distribuído, e perguntou se é legítimo dois países com governos democráticos terem sido na prática impedidos de seguir o modelo que consideravam mais eficaz para o combate à pandemia.

Perguntou se já alguém reflectiu no impacto das moedas virtuais sobre o ambiente e revelou que um estudo da Universidade de Cambridge estimou que o ecossistema dos bitcoins consome tanta energia num ano como um país com a dimensão da Argentina.

Vergílio Rocha, coordenador do Grupo de Missão da APDSI para as questões Éticas e que coordenou a elaboração do Manifesto, garantiu que hoje o Estado e decisores políticos e empresariais e aqueles que constroem a tecnologia estão muito mais conscientes do potencial das tecnologias, mas também dos riscos que incorpora e que temos de mitigar e ultrapassar.

Adiantou que o Manifesto, que vai no sentido de uma visão humanista das tecnologias que coloque o ser humano no centro das decisões, nasceu porque se verifica que «ainda não existe na sociedade portuguesa uma confluência de vontades que promova os valores» de propostas nele enunciada.

Defendeu a criação de mecanismos de regulação da utilização das tecnologias emergentes, de forma a respeitar o utilizador humano e a sociedade no seu conjunto, a criação de um enquadramento legislativo específico que assegure uma clara identificação das organizações que usam a tecnologia e uma adequada fiscalização das normas éticas e práticas seguras no uso da tecnologia.

Como próximos passos da iniciativa do Manifesto, indicou o investimento na operacionalização de acções que cumpram os objectivos identificados no compromisso.

A Presidente da APDSI, Maria Helena Monteiro apontou, entre as quatro grandes metas para a transformação digital, o reforço das qualificações digitais e do volume de mão-de-obra europeia especializada em tecnologias da informação e observou que, embora os números assustem, a APDSI está de acordo com as metas da Comissão Europeia (CE), que pretende que em 2030 pelo menos 80% dos adultos da União Europeia (UE) tenham, no mínimo, competências digitais básicas e que a UE tenha pelo menos 20 milhões de especialistas em TI.

Falando no final da conferência, a presidente da APDSI ressaltou que em 2019 havia apenas 7,8 milhões de especialistas e TI na UE e salientou o «salto» necessário para passar para 30 milhões de especialistas em tecnologia em 2030.

Observou que as metas da CE de chegar a 2030 com infra-estruturas digitais seguras, eficazes e sustentáveis e todas as famílias com conectividade Gigabit também é um desafio muito grande.

Sustentou, contudo, que Portugal e a União Europeia não podem atingir os níveis de que precisam em termos de comparabilidade e competitividade com outros espaços do resto do mundo se não conseguirem dar aquele salto.

A orientação para a UE é que três em cada quatro empresas tenham infra estruturas tecnológicas que permitam operar na nuvem, com processamento de grandes volumes de dados, recurso à inteligência artificial, e que 90% das pequenas e médias empresas atinjam pelo menos um nível básico de intensidade digital, indicou Maria Helena Monteiro, observando que hoje na UE são apenas 15%, já não falando de Portugal.

Outra etapa definida é a digitalização dos serviços públicos na União Europeia, nomeadamente que os serviços públicos estejam acessíveis por Internet, em linha, e que 80% dos cidadãos utilizem uma solução de identificação digital.

A presidente da APDSI sublinhou que fazer acontecer aqueles desafios envolve uma aceitação e uma transformação muitíssimo grande e que aquelas metas estão associadas ao crescimento da cidadania digital, através dos direitos e princípios dos cidadãos europeus.

A sociedade civil, as academias e as empresas têm de participar nesta ambição e neste desafio.

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